quinta-feira, fevereiro 17, 2011

A memória é um osso duro de roer!

Discutimos muitas vezes.
Lembro-me de vezes em que a raiva que sentia por ele era tanta, que nem o lençol de lágrimas que me escorria pelo rosto eram suficientes para camuflar o que sentia dentro de mim.

Lembro-me dos olhos cavados característicos e dos dentes inferiores tortos que apareciam no meio da barba quando irritantemente fazia aquelas brincadeirinhas que só ele sabia fazer e que sempre me incomodaram.

Lembro-me da condução desregrada, dos nervos que me dava andar no carro dele, das palmas repentinas, tão repentinas e altas que me turvavam os sentidos e me impediam de ver o seu sorriso de criança a olhar para nós contente pela travessura que tinha feito.

Lembro-me da luta que nos dava para conseguirmos tirar dele mais uma notinha, de como nos obrigada a argumentar, implorar, regatear pelo que tinha na carteira e de como no final sempre nos lançava um sorriso enquanto agarrava nas notas com força para termos de puxar.

Lembro-me de me ir buscar à paragem de autocarro, com o cão, logo ali em frente a casa às 3, 4, 5 da manhã, de sweat branca, velha, larga, manchada... e aquelas calças de fato de treino azuis que insitia em usar em conjunto com as meias brancas de desporto e o sapato de verniz que tão bem ficava no conjuntinho. Lembro-me do ar cansado, ensonado, despenteado e com o vincos da almofada...a pena que me davas!

Lembro-me das mãos, iguais ás minhas e que tantas vezes depois de voltar da terra traziam marcas de enxada e lascas de madeira ferindo a pele...e das pernas com as canelas marcadas de quedas e mágoas que foi fazendo ao longo dos anos pelos mais variados motivos.

Lembro-me das corridas que dávamos de vez em quando quando me sentia inspirada e que ele nunca recusava. Lembro-me dos patins que um dia comprou e que depois deixou de parte por ter mandado um tralho quando tentou andar sozinho. Dessa experiência apenas resultou num par de patins abandonados.

Lembro-me de me ensinar a andar de bicicleta, de correr tempos infinitos a meu lado segurando na bicicleta e de como fazia aquele truque dos pais que quando olhava para trás afinal ele já não estava lá, e ficava nervosa por estar a andar sozinha.

Lembro-me dos passeios de bicicleta que dávamos pelos jardins de belém, e de como um dia fomos quase até ao Terreiro do passo, e no dia seguinte ele quase nem se podia sentar de dores musculares.

Lembro-me do passo acelerado que sempre tinha e que tantas vezes me obrigou a fincar o pé e parar até que ele se désse conta que estávamos quase a correr, e assim esperar por mim...e dava-me a mão para me puxar, para andar ao ritmo dele...nunca o consegui parar...

Lembro-me de o ver olhar para nós, cheio de fome, enquanto comíamos no chinês onde tantas vezes fomos com ele, e de como passou a preferir mesas mais escondidas.

Lembro-me dos esforços para não mostrar que se sentia sozinho, das revistas que usava como bandeja e que depois ficavam abandonadas no sofá, da loiça por lavar acumulada no lava-loiças. Do cheiro da casa.

Lembro-me de como insistia sempre para que ligássemos à mãe, apesar do frete de jovens imberbes estampado na nossa cara.

Lembro-me de quando o vi sem barba pela primeira vez em 28 anos, e de como descobri um pai comido pela dor, mas sempre cheio de força para lutar.

Lembro-me da perna, do pé, da mão pendurada, do corpo sem carne debaixo do fato que usava para esconder a magreza excessiva.

Lembro-me da cama, das máquinas, das mãos secas e do corpo imóvel e tragado, enquanto os olhos sedentos não parávam um segundo.

Lembro-me de quando me despedi dele quando tudo o que me apetecia dizer era que não fôsse, que não lhe tinha dito tudo o que ele precisava de ouvir, que não sabia viver sem as constantes surpresas e sustos que frequentes que me deu. Não lhe disse que o meu jeito seco foi herdado com tanto carinho do seu Ser e que apesar de o negar, sou o reflexo do amor dele.

Ainda me protege em sonhos. Ainda me agarra na mão e obriga a andar. Ainda me sorri e faz travessuras. Ainda me recorda com frequência que não estou sozinha e que esperará naquela paragem as vezes que forem precisas, o tempo que fôr preciso para que eu me diverta sem preocupações.

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