sábado, março 05, 2011

Dromedário esvoaçante

E então ela sentou-se. Preparou o caderno e escreveu.

Despejou ali tudo o que sentia e ao mesmo tempo nada dela saiu. Tudo continuou guardado, tudo continuou em silêncio, porque o som que dela saia não era audível senão para aqueles que não podem falar.

Escreveu...escreveu...escreveu...falou com tudo, com todos, sussurrou, gritou, e no entanto nada, mas mesmo nada saiu.
Continua a navegar nas suas palavras, sozinha, como um marinheiro perdido na imensidão do mar.
Continua a carregar o peso de tudo o que transporta nas costas, como um dromedário cheio de reservas mas que morre de sede. Dromedário sim...apenas uma bossa, porque uma basta para guardar tudo de tão comprimido que está, de tão guardadinho e encaixadinho. É cuidadosa até no modo como conserva aquilo que a sufoca, porque quem sabe se assim apertadinho sufoca menos, porque quem sabe se assim escondidinho ninguém nota o peso que ás vezes lhe verga a coluna que todos vêem tão direitinha.

Não se queixa do peso, afinal, foi ela que o guardou ali.
Há quem o deite fora. Ela, pelo contrário,conserva tudo como quem não conserva nada.

No outro dia cruzei-me com ela no autocarro.

Naquele dia consegui ver-lhe a bossa que disfraçava sorrindo e descrevendo imagens coloridas que me enchiam os olhos.
Naquele dia, quando a vi afastar-se percebi que até os pássaros ás vezes descem à terra para transportar os seus fardos disfarçados de liberdade.

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